Como poderei ir-me em paz e sem pena?
Não, não será sem um ferimento na alma que deixarei esta cidade.
Longos foram os dias de amargura que passei dentro de suas muralhas, e longas as noites de solidão; e quem pode despedir-se sem tristeza de sua amargura e de sua solidão?
Muitos foram os pedaços de minha alma que espalhei nestas ruas, e muitos são os filhos de minha ansiedade que caminham, desnudos, entre estas colinas, e não posso abandoná-los sem me sentir oprimido e entristecido.
Não é uma simples vestimenta que dispo hoje, mas a própria epiderme que arranco com minhas mãos.
Nem é um mero pensamento que deixo atrás de mim, mas um coração enternecido pela fome e pela sede.
Contudo, não posso demorar-me por mais tempo.
O mar, que chama a si todas as coisas, está me chamando, e devo embarcar.
Pois permanecer aqui, enquanto as horas queimam-se à noite, seria congelar-me e cristalizar-me num molde.
De bom grado levaria comigo tudo o que está aqui.
Mas como fazê-lo? A voz não leva consigo a língua e os lábios que lhe deram asas.
É isolada que deve procurar o éter.
É também só e sem ninho que a águia voará rumo ao Sol.
“Como poderei ir-me em paz e sem pena?” Essa pergunta carrega em si o peso de um dilema existencial, um daqueles que insistem em nos fazer parar diante das escolhas da vida. Para quem parte, o ato de despedir-se de um lugar amado, de um espaço onde a alma se desenhou em cada esquina, transcende a simples ação de virar as costas. É arrancar camadas de identidade, é um ritual de abandono que dialoga com o inevitável, mas não sem dor.
Quando falamos sobre despedidas, não lidamos apenas com espaços físicos, mas com memórias, sentimentos e, sobretudo, pedaços de nós mesmos que espalhamos ao longo do caminho. A cidade, que é mencionada como cenário central, não é apenas um amontoado de ruas e construções; é um recipiente de experiências que moldaram o sujeito. Dias de amargura, noites de solidão: não são apenas tempos que se foram, mas momentos que talharam, com cinzel firme, a alma de quem os viveu.
A dor de deixar o que nos formou
A despedida, por vezes, é confundida com ingratidão, mas talvez seja o contrário. É precisamente porque nos sentimos gratos pelas marcas deixadas na alma que partir é tão doloroso. Quem pode, afinal, abandonar sem peso aqueles “filhos da ansiedade” que vagam desnudos, representando nossos anseios, nossas esperanças e até nossos fracassos?
Quando o texto menciona que não se está apenas despindo uma vestimenta, mas arrancando a própria epiderme, atinge uma profundidade quase visceral. Essa imagem traduz o que é abandonar não apenas um lugar físico, mas também o significado que ele carrega. É um rompimento que ultrapassa o material e toca no imaterial, no simbólico.
O chamado inevitável
Ainda assim, há um chamado que não se pode ignorar. O mar, que “chama a si todas as coisas”, representa o fluxo inevitável da existência. Assim como o rio corre para o oceano, nós somos impelidos a seguir adiante, mesmo que isso nos custe. O apego, por mais belo que seja, pode aprisionar. Permanecer significa, muitas vezes, congelar-se, tornar-se estático em um mundo que é, por essência, movimento.
Esse chamado não é egoísta; ele nos lembra que a vida, em sua essência, é transformação. Permanecer onde estamos, enquanto as horas queimam-se e tornam-se cinzas, é perder a oportunidade de crescer, de mudar. A águia que voa para o Sol não o faz por rejeição ao seu ninho, mas porque entende que sua natureza exige isso.
O paradoxo da partida
Despedir-se de algo amado é viver um paradoxo: é sentir o peso da perda e, ao mesmo tempo, a leveza de atender a um chamado maior. É um movimento de dor e esperança, de deixar para trás para poder ir adiante. Como a voz que se separa da língua e dos lábios para encontrar o éter, nós nos separamos do que nos formou para buscar aquilo que ainda nos transformará.
Nas palavras de Mário Sérgio Cortella, há sempre um convite à reflexão sobre a transitoriedade da vida. Nada do que somos ou temos é permanente; tudo se modifica, tudo flui. Essa fluidez, no entanto, não é motivo de angústia, mas de renovação. Desapegar-se, partir, não significa esquecer, mas carregar consigo aquilo que importa, de forma leve, para o próximo capítulo.
Assim, ao encarar a despedida, talvez possamos perguntar: “O que levarei daqui, não no bolso, mas na alma?” Porque, no fim, é a alma que embarca conosco, enquanto deixamos as ruas, as colinas, as memórias fixadas em um lugar.
O ciclo que nunca se fecha
Cada partida, por mais definitiva que pareça, é apenas um ciclo que se inicia. O mar que chama também acolhe, e o que hoje é adeus pode amanhã ser reencontro, ainda que de outra forma. A vida, assim como a águia que busca o Sol, não conhece moldes permanentes.
Então, talvez a questão não seja “como poderei ir-me em paz e sem pena?”, mas “como posso honrar o que vivi e, ainda assim, seguir adiante com leveza?”. Essa é uma pergunta que, em seu cerne, nos faz revisitar o sentido de pertencer e de se transformar.